quero ser comida pelas pinturas flamengas como quero entrar na terra do campo
neste momento, gostava de poder fazer parte dalguma das Alegorias aos cinco sentidos do Jan Brueghel, "o Velho". gostava mesmo de poder entrar nalguma delas. dava... enfim, nem sei o que eu era capaz de doar para poder penetrá-las neste momento. acontece-me isso com a pintura flamenga dos séc. XVI e XVII mais do que com qualquer outra obra de qualquer outra época. é uma atracção irrestistível... e penso que, de alguma forma, mais do que uma vez, já consegui entrar nessas pinturas. lembro-me, nomeadamente, de duas vezes em que isso aconteceu: no Museo del Prado em Madrid e na Gemäldegalerie Museum em Berlim. relatar agora o processo de transportação e consequente sensação de acesso seria, acho, uma perca de tempo e de palavras. podia tentar, claro, mas sinto que não sou capaz de transmitir de forma clara um facto tão empiricamente intransferível ou racionalmente incompreensível. e até porque há coisas que não devem ser ditas. têm de ficar dentro de nós, como qualquer grande segredo. é o pormenor extremado e o brilho das cores e a finura nos traços e mais alguma coisa que nem sequer eu sei, aquilo que me faz ser uma apaixonada pela pintura flamenga. é a mesma inclinação visceral que sinto quando cheiro a terra do campo e tenho de me reprimir para não trincar nela, mastigá-la e engoli-la. quero entrar nas pinturas flamengas como quero comer a terra do campo, porque o acto de ingestão daquilo que nos atrae é um acto de possessão daquilo que nos atrae, sendo que quando nos nutrimos daquilo que desejamos não é para o destruir, mas para passar a formar parte disso, que é maior do que nós.
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