sábado, dezembro 17, 2005

não há palavras para descrever a emoção sorridente que me causam as descobertas, sejam elas do género que forem. nem sempre o sentimento é proporcional à pressuposta importância da coisa achada. o dia em que descascámos uma castanha e descobrimos um pequeno cérebro não foi menos importante do que o dia em que ouvimos Telemann pela primeira vez. e apesar de eu descobrir todos os dias coisas novas que me emocionam (nem sequer a canção das árvores é a mesma de cada vez que o vento toca ao de leve nas folhagens), ainda não existem em mim as palavras que possam descrever esta alegria singela.

hoje, como todos os dias, descobri também. a grande emoção de hoje é esta:


AS PALAVRAS EM TRÂNSITO

Resvalas neste sopro.Sabes
que tens o olhar ferido
desde sempre, que o incêndio
das palavras em trânsito celebra
prescritas sílabas, ancorados
ritos, desprevenidos
equinócios.
Dantes,
havia um mar crispado
na fissura dos lábios. Hoje, apenas
algumas gotas de sal.


OS VÉUS DA SOMBRA

Tomba-me sobre a mesa este corpo, de uma vibração ao mesmo tempo sensível e secreta. Das suas pálpebras, como se um rasgão as ferisse, uma luz molhada pende, acessível. Inacessível, o timbre dos rumores que a sustentam.
O clarão, se inesperado, cega. Os olhos, às vezes, para ver, precisam dos véus da sombra.


UNHAS

Também as unhas são um lugar inóspito de intranquilidade. Como punhos inflamados, rasgam às vezes a crosta em ferida do silêncio e extraem dele o pus acumulado durante a noite. Então as unhas sangram. Então as unhas vibram como estiletes em brasa, queimando o próprio magma de cuja substância se alimentam.


PERFUME

Nomearás
a abelha. Do mel
só conheces
o perfume, a pálida
rosa dos favos
em botão. O gesto
suspenso à espera
da mão esquiva
que o sustente.


A LÂMINA, O PUNHAL

Não haverá futuro – e haverá
somente esta lâmina
de quartzo lacerando
a carne amarrotada. E haverá
somente este punhal
de cinza cravado
entre almofadas inúteis
e lençóis vazios.


CÍRCULO

E então o círculo começa a desenhar-se obliquamente, na fosforescência da sua nudez. Nos interstícios, uma luz rugosa deixa rolar as escamas sem brilho dos peixes mortos.
A tarde é um relâmpago apagado, sem fulgor. São as vésperas da noite , dizem, mas o espaço volatilizou-se, as estrelas, móveis, tombaram em cascata no fundo do poço.
É o vazio do círculo, a sua face excêntrica.


RELÓGIO SEM PONTEIROS

Quando agora te debruças sobre a água do tanque, vês projectado, lá no fundo, um relógio sem ponteiros. Percebes, então, que a ferrugem é também uma qualidade e um atributo da água, e não apenas de alguns metais a que chamamos vis. E percebes ainda que já não são necessários os relógios. Tu já não tens idade, nem o tempo, que partilha do halo e da fluidez da água e é, às vezes, como ela, tão inodoro e insípido, se deixa prender, mesmo num vaso de cristal. E não podes, assim, medir-lhe a respiração. A sua duração, se preferes. Se alguma ainda subsiste, é a que é regulada pelos ponteiros do teu próprio corpo.

(O Mesmo Nome - Albano Martins)