SOBRE O ILOGISMO NO AMOR OU O PARADOXO ENTRE O SENTIR E O PENSAR
1. sobre o ilogismo no amor
quando Wittgenstein abriu a porta do escritório, Russell estava sentado à secretária. passava a mão pela superfície lisa da mesa tentando perceber, com a ponta dos dedos, qualquer coisa imperceptível. demorou um tempo em levantar o olhar, fixado nas partes brancas da madeira que reflectiam a luz, e no intervalo desse movimento breve, Wittgenstein já tinha fechado a porta e tinha dado os primeiros passos em direcção a ele. "gostava de falar consigo", disse Russell. o seu rosto parecia espelhar também uma certa claridade ou qualquer coisa que, aos olhos de Wittgenstein, não era imperceptível. o professor convidou o aluno para se sentar à frente dele. tinha a convicção que as reflexões do discente alemão viriam esclarecer algumas dúvidas sobre temas que o tinham inquietado nos últimos tempos. quando começaram a conversar, a mão de Russell continuava a deslizar pela secretária, como se não quisesse que nada nem ninguém lhe proibisse o tacto analítico dos objectos. no entanto, Wittgenstein reparou logo que a sua presença em nada perturbava a ocupação da mão do mestre, antes pelo contrário, uma vez que os dedos de Russell mostravam-se agora mais ágeis e mais concentrados na sua tarefa. o professor, de carácter probo, sempre intimidou o aluno desde que este chegou a Cambridge, mas desta vez o seu corpo distinto esboçava gestos simples que Wittgenstein observava admirado. o rosto de Russell tornou-se definitivamente singelo quando disse com tom acanhado:
- você acha que o amor pode conter-se a si mesmo?
uma luz ténue envolveu subitamente todos os objectos do escritório. era o início do outono a entrar pela janela. por uns momentos sumiram todas as sombras, e Wittgenstein deixou-se cercar também por esse esplendor despretensioso para embuçar a sua excitação.
- fala no amor como descrição definida em posição de sujeito ou de predicado?
Russell sorriu.
- falo no amor em termos de conjunto de todos os conjuntos.
- que género de conjunto é esse exactamente?
- é o conjunto de todos os conjuntos que não se contêm a si próprios como membros. chamo-lhe conjunto "A".
- então, de acordo com a sua definição, se "A" se contém a si mesmo não é membro de "A". por outro lado, se "A" não se contém a si mesmo tem que ser membro de "A".
houve um momento de silêncio entre as palavras de Wittgenstein e a mão de Russell a pousar-se levemente no canto da secretária. a palma da mão, aberta e virada para cima, parecia uma flor murcha ou um animal morto. apesar do semblante satisfeito do professor, Wittgenstein percebeu que Russell sentia-se cansado; se bem que esse esgotamento não era o reflexo de alguém desiludido por ter topado com uma contradição. aliás, Wittgenstein sabia que as suas palavras tinham servido apenas para que Russell confirmasse mais uma das suas teorias. depois, o professor exprimiu o seu agradecimento e o aluno levantou-se da cadeira e foi-se embora.
1. sobre o ilogismo no amor
quando Wittgenstein abriu a porta do escritório, Russell estava sentado à secretária. passava a mão pela superfície lisa da mesa tentando perceber, com a ponta dos dedos, qualquer coisa imperceptível. demorou um tempo em levantar o olhar, fixado nas partes brancas da madeira que reflectiam a luz, e no intervalo desse movimento breve, Wittgenstein já tinha fechado a porta e tinha dado os primeiros passos em direcção a ele. "gostava de falar consigo", disse Russell. o seu rosto parecia espelhar também uma certa claridade ou qualquer coisa que, aos olhos de Wittgenstein, não era imperceptível. o professor convidou o aluno para se sentar à frente dele. tinha a convicção que as reflexões do discente alemão viriam esclarecer algumas dúvidas sobre temas que o tinham inquietado nos últimos tempos. quando começaram a conversar, a mão de Russell continuava a deslizar pela secretária, como se não quisesse que nada nem ninguém lhe proibisse o tacto analítico dos objectos. no entanto, Wittgenstein reparou logo que a sua presença em nada perturbava a ocupação da mão do mestre, antes pelo contrário, uma vez que os dedos de Russell mostravam-se agora mais ágeis e mais concentrados na sua tarefa. o professor, de carácter probo, sempre intimidou o aluno desde que este chegou a Cambridge, mas desta vez o seu corpo distinto esboçava gestos simples que Wittgenstein observava admirado. o rosto de Russell tornou-se definitivamente singelo quando disse com tom acanhado:
- você acha que o amor pode conter-se a si mesmo?
uma luz ténue envolveu subitamente todos os objectos do escritório. era o início do outono a entrar pela janela. por uns momentos sumiram todas as sombras, e Wittgenstein deixou-se cercar também por esse esplendor despretensioso para embuçar a sua excitação.
- fala no amor como descrição definida em posição de sujeito ou de predicado?
Russell sorriu.
- falo no amor em termos de conjunto de todos os conjuntos.
- que género de conjunto é esse exactamente?
- é o conjunto de todos os conjuntos que não se contêm a si próprios como membros. chamo-lhe conjunto "A".
- então, de acordo com a sua definição, se "A" se contém a si mesmo não é membro de "A". por outro lado, se "A" não se contém a si mesmo tem que ser membro de "A".
houve um momento de silêncio entre as palavras de Wittgenstein e a mão de Russell a pousar-se levemente no canto da secretária. a palma da mão, aberta e virada para cima, parecia uma flor murcha ou um animal morto. apesar do semblante satisfeito do professor, Wittgenstein percebeu que Russell sentia-se cansado; se bem que esse esgotamento não era o reflexo de alguém desiludido por ter topado com uma contradição. aliás, Wittgenstein sabia que as suas palavras tinham servido apenas para que Russell confirmasse mais uma das suas teorias. depois, o professor exprimiu o seu agradecimento e o aluno levantou-se da cadeira e foi-se embora.
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