quarta-feira, fevereiro 08, 2006

o consertador de sapatos
era uma vez um miúdo que queria ser consertador de sapatos. "sapateiro", confirmavam os colegas da escola. "não", dizia ele, "não quero nem fazer nem vender sapatos. quero apenas arranjar sapatos". quando alguém interessava-se pelos motivos que o levavam a querer ser consertador de sapatos, ele asseverava com olhar grave "gosto de pés". já alguma vez lhe tinham dito "se gostas assim tanto de pés, porque é que não queres ser podologista?", e ele respondia sem hesitar "não gosto propriamente de pés, gosto é de imaginar pés". passaram os anos, e o miúdo deixou de ser miúdo para ser um rapaz que consertava sapatos. todas as pessoas na cidade diziam que ele tinha mãos aprimoradas, "mãos boas", diziam. todas as pessoas admiravam a sua destreza; a sua arte. um dia entrou na pequena oficina uma rapariga ruiva de pele branquinha. ficaram os dois em silêncio a olhar um para o outro durante algum tempo, até que ela, com voz delicada e serena, preguntou-lhe "consegue consertar os meus sapatos sem eu ter de os tirar?". o rapaz limitou-se a assentar com a cabeça e pôs-se logo a remendar da melhor maneira que soube, tentando não magoar os pés da rapariga. quando acabou, ela olhou para os seus sapatos e sorriu. depois foi-se embora deixando atrás de si um rasto de fogo no ar. após esse dia, de cada vez que o rapaz segurava um sapato estragado, não conseguia imaginar aqueles pés que se iriam enfiar novamente naquele calçado. rodeado por formas de madeira, enquanto colocava meias solas ou tacões e cosia à máquina e engraxava, o rapaz via apenas espaços vazios e não podia imaginar outros pés a não ser aqueles que, enfiados nuns sapatos, segurou um dia nas suas mãos. assim, pouco a pouco, o acto de consertar sapatos foi perdendo todo o sentido e o rapaz resolveu então abandonar a cidade. fechou a pequena oficina, pegou numa saca com poucas coisas e saiu de casa em direcção ao campo. andou durante horas por estradas desertas e já era noite estrelada quando avistou à esquerda do caminho uma planície de papoilas. o rapaz notou como uma aragem morna envolvia o seu corpo num remoinho, empurrando-o aprazivelmente para fora da estrada, levando-o em flutuação para as flores vermelhas. no centro da planíce, pousou a saca em cima de um leito de calhaus rolados, deitou-se na terra mole e ficou a olhar para o céu. ficou a imaginar os pés da rapariga ruiva e a recordar o luar que irradiava da sua pele e o seu sorriso suave e a sua voz meiga. de repente, um calor abafado instalou-se no seu peito e o rapaz inspirou fortemente pelas narinas e expirou pela boca. sentiu então que uma árvore nascia no seu interior; um pequeno rebento a despontar da terra, a crescer verticalmente, transformando-se num tronco forte que se ia ramificando e florescendo. rapidamente pôs a mão sobre o seu coração e entendeu logo que devia voltar para a cidade. no dia seguinte, voltaria para a sua pequena oficina e, rodeado por formas de madeira, esperaria que a rapariga aparecesse para ele consertar os seus sapatos. com este pensamento firme adormeceu de corpo estendido no campo de papoilas. adormeceu de sorriso desenhado nos lábios enquanto a brisa agasalhava as suas formas e as estrelas, de olhos bem abertos, tomavam conta do seu sonho.