faz hoje 10 anos
3 de Março de 1996 em Paris. morreu Marguerite Duras. lembro-me. cheguei em casa dos meus pais depois das aulas. eram cerca das nove e meia da noite. não sei ao certo onde estava a minha mãe quando eu abri a porta da casa e entrei e disse "olá", mas decerto que ela não tinha estado à minha espera durante horas na sala de jantar e mesmo assim, logo que fechei a porta e caminhei pelo corredor e entrei na sala, encontrei-a ali, em pé, à minha espera, como se assim tivesse permanecido durante horas. ficamos a olhar uma para a outra. o olhar da minha mãe é doce e límpido... depois, ela pegou no jornal e enquanto procurava a página certa disse "morreu Marguerite Duras". passaram apenas uns segundos entre as palavras da minha mãe e o seu dedo a assinalar a notícia. passaram ainda mais alguns segundos entre o dedo da minha mãe a assinalar a notícia e as minhas mãos a segurarem o jornal. acho que o tempo parou durante o espaço de irrealidade em que li o texto; em que senti um nó a crescer na minha garganta. no momento em que não consegui reter a pena, e a tristeza despenhou-se
liquidamente, devagar, pela minha face. "e agora?", disse eu. "agora restam os livros; as palavras", disse a minha mãe. "e as palavras que jamais serão escritas? que nunca lerei?", acrescentei.
É sempre numa casa que estamos sós. E não fora dela, mas dentro dela. No parque há pássaros, gatos. Mas, às vezes, também um esquilo, um furão. Não estamos sós num parque. Mas, em casa, estamos tão sós que, por vezes, nos perdemos. Sei, agora, que lá permaneci dez anos. Só. E para escrever livros que me fizeram saber, a mim e aos outros, que eu era a escritora que sou. Como é que isso se passou? E como será possível dizê-lo? O que posso dizer é que a qualidade da solidão de Neauphle foi feita por mim. Para mim. E que não é apenas nessa casa que estou só. Para escrever. Não para escrever como o havia feito até aí. Mas para escrever livros que me eram ainda desconhecidos e ainda nunca decididos por mim e nunca decididos por ninguém. Aí escrevi A Ausência de Lol V. Stein e O Vice-Cônsul. E, depois desses, outros. Percebi que era uma pessoa só com a minha escrita, só, muito longe de tudo. [...]
A solidão da escrita é uma solidão sem a qual o escrito não se produz, ou se esfarela, exangue de procurar o que escrever. Perde o seu sangue, já não é reconhecido pelo autor. E, antes de mais, é preciso que nunca seja ditado a uma secretária qualquer, por mais hábil que ela seja, e que não seja nunca, nessa fase, dado a ler a um editor.
É sempre necessária uma separação das pessoas que rodeiam aquele que escreve livros. É uma solidão. É a solidão do autor, a da escrita. Para inciar a coisa, interrogamo-nos acerca desse silêncio à nossa volta. Praticamente a cada passo que se deu numa casa e a todas as horas do dia, sob todas as luzes, quer estejam do lado de fora, quer sejam lâmpadas acendidas durante o dia. Essa solidão real do corpo torna-se outra, inviolável, a da escrita. Eu não falava disso a ninguém. Nessa época da minha primeira solidão, tinha já descoberto que dedicar-me à escrita era o que eu tinha de fazer. Já o tinha visto confirmado por Raymond Queneau. A única apreciação de Raymond Queneau foi esta frase: "Não faça mais nada, escreva."
Escrever, era a única coisa que me povoava a minha vida e que a encantava. Fi-lo. A escrita nunca mais me abandonou.
Escrever - 1993
"e agora?". agora; depois; sempre restarão os livros. e não só. restam as palavras dela que estão a ser lidas neste instante por alguém; as palavras que alguém haverá de ler mais tarde, algum dia, e que são agora palavras futuras como se ainda não tivessem sido escritas; as palavras que eu relerei e que serão novas para mim porque nunca serão as mesmas. porque não sou eu a mesma. parece que sei mais alguma coisa sobre a Morte do que sabia naquela época e tenho a certeza que sei menos sobre a Morte do que sabia na altura, embora nunca mais chorasse pela morte de um escritor chegado. nunca voltei a chorar pela morte de um escritor. resta a escrita que não morre porque sempre há leitores a nascerem (ou a renascerem) e, assim, as palavras serão sempre escritas pela primeira vez. ou eu nunca deixarei de a ver sozinha na sua casa a escrever quando, sozinha na minha casa ou no parque separada das pessoas e dos esquilos, longe de tudo, leia de novo as suas palavras. depois, também eu nunca falarei disso a ninguém.
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