segunda-feira, dezembro 26, 2005

32.000 bombas como a de Hiroshima
são quase oito da manhã. o filho ainda está a dormir aninhado sob um fino cobertor às flores vermelhas, laranjas e amarelas. as formas do seu corpo ficaram imprimidas no chão de madeira que range a cada movimento subtil do miúdo. a mãe está a preparar uma massa com farinha de arroz. o pai acordou há horas, quando lá fora ainda estava a noite a cobrir as estradas de pó. acordou quando a mulher e o filho estavam ainda a dormir sob o cobertor às flores vermelhas, laranjas e amarelas. comeu uma papaia muito madura, olhou para o filho e depois pegou nas telas que a sua mulher tinge todos as tardes com casca de mangostim diluída em água. saiu à rua e atravessou a noite até chegar ao mercado. acocorada no centro da pequena habitação de madeira, de mãos afundadas na massa que vai crescendo aos poucos dentro do tacho, a mãe chama ao filho pelo seu nome. o filho abre os olhos. sem dizer uma palavra, levanta-se e veste os calções verdes de algodão. come uma papaia muito madura, olha para a mãe e depois pega no garrafão de plástico que está encostado à soleira da porta. sai à rua e caminha descalço pelas estradas de pó até chegar ao poço.

todas as manhãs eram iguais em Jaffna. o pai saia muito cedo para ir vender telas ao mercado; a mãe preparava uma massa com farinha de arroz; o filho ia buscar água ao poço. mas uma manhã como a de hoje, em Jaffna, cairam 32.000 bombas como a de Hiroshima transformadas numa onda gigante. esta manhã, em Jaffna, o pai não foi vender telas ao mercado porque há um ano que uma dor muito intensa paralisou-lhe a alma; a mãe não preparou a massa com farinha de arroz porque ainda está a gritar à terra o nome do seu filho; o filho não foi buscar água ao poço porque, numa manhã como a de hoje, sem ter tempo de dizer uma palavra, o seu corpo passou a pertencer ao mar.