segunda-feira, maio 29, 2006


2. o paradoxo entre o sentir e o pensar
Wittgenstein abandonou o escritório de Russell com passos curtos e hesitantes. já no corredor, uma mulher magra e ruiva perguntou-lhe se sabia onde estava a biblioteca central. o seu olhar tinha a profundidade de um poço de água escura e Wittgenstein esforçou-se por se recompor da comoção que, afundada no seu peito, desabrochava brutalmente paralizando todos os movimentos do seu corpo. finalmente, os seus lábios trémulos conseguiram separar-se para pronunciar as palavras que a mulher magra e ruiva esperava ouvir. sem dar-lhe tempo para agradecer a informação, Wittgenstein virou-lhe as costas e começou a caminhar pelo corredor envidraçado em direcção ao pátio dos salgueiros-chorões. a cada passo que dava, o seu coração batia mais e mais forte. no claustro, à sombra das árvores, havia alguns alunos sentados em bancos de pedra. Wittgenstein, estonteado e com falta de ar, encostou-se a uma das colunas que cercavam o pátio. fechou os olhos e deixou que o som da água que borbotava do chafariz lhe penetrasse pela pele adentro. "há sons que são como um silêncio", pensou. "um silêncio a enfiar-se pelos resquícios que o céu abre durante a noite. há silêncios que são como um som". ninguém sabe ao certo quanto tempo é que Wittgenstein ficou assim, encostado à coluna, mas quando abriu os olhos já não havia estudantes sentados em bancos de pedra. apenas a melancolia curva dos salgueiros e o ecoar dos jorros de água numa voz infinita que se elevava até às nuvens. Wittgenstein parecia ter recuperado o fôlego, mas ainda quis permanecer uns intantes parado. "o que foi?", interrogou-se. "tu tás doido", afirmou. "até porque tu não és como o Andrew, nem como o Richard, nem como o Edward". com este pensamento atravessou o pátio dos salgueiros-chorões. passou por corredores estreitos e envidraçados. atravessou ainda outro pátio e caminhou por outros corredores até chegar à rua. a luz de outono é linda e despretensiosa, ninguém duvida disso. "tu não és como o Andrew, nem como o Richard, nem como o Edward". a luz de outono nas ruas de Cambridge é um silêncio suspenso nas ramas das árvores; é uma luminosidade calada a pingar das folhas. "tu não és como eles". a luz de outono nesta cidade é um som delicado quando bate no chão. "tu não és como o Andrew, nem como o Richard, nem como o Edward", repetiu mais uma vez enquanto introduzia a chave na fechadura da porta do seu quarto do Trinity College.


lá fora começava a chover, mas Wittgenstein não olhou pela janela. dirigiu-se ao lavatório e olhou-se bem no espelho. depois encheu com água o reservatório e fez uma bacia com as mãos. molhou a cara. molhou o pescoço e o cabelo. passou a palma da mão esquerda pelos olhos e esfregou-os antes de levantar o olhar para encontrar novamente o seu reflexo. desta vez, porém, a sua face não era a sua face: no rectângulo pendurado estava o rosto de Russell. Wittgenstein sentiu um aperto no peito, mas não hesitou em aproximar-se suavemente dos lábios dele. os seus beiços colaram aos beiços de Russell e depois beijou-o. beijou-o várias vezes enquanto susurrava "amo-te" "amo-te". sim, Wittgenstein amava Russell. não foi logo no primeiro dia que o começou a amar. foi com o passar do tempo e das conversas. o Edward foi o único que reparou, mas nunca lhe falou nisso. sabia que Wittgenstein teria reagido mal perante as suas suspeitas. preferiu ficar calado e esperar. mais tarde ou mais cedo, o seu colega haveria de compreender que o amor é uma dádiva livre de qualquer tese logicista. no entanto, quando a língua de Wittegenstein tocou na superfície fria do espelho, uma torrente de sentencias fendeu-lhe o coração. deu um passo atrás, gritou "não!" e mandou um murro na imagem reflectida. o som aguçado do espelho a estilhaçar propalou-se pelo quarto durante um espaço de tempo incalculável. traspassou paredes e espalhou-se pelos corredores. pouco depois, alguém bateu na porta no momento em que Wittegenstein viu o seu punho em sangue. bateram pela segunda vez mas ele não respondeu. permaneceu em pé, sem se mexer, até ouvir como os passos do lado de fora afastavam-se devagar desenhando pontos de interrogação no soalho de madeira. se Wittgenstein tivesse olhado pela janela logo depois de entrar no quarto, teria visto uma miúda loira sob a chuva a virar o pescoço para ele e a sorrir. uma menina muito bonita a mandar-lhe beijinhos com a mão. mas Wittgenstein dirigiu-se ao lavatório logo depois de entrar no quarto e agora estava em pé a ver o seu punho a gotejar. tirou um lenço do bolso de modo a estancar o sangue e, seguidamente, abriu uma das gavetas da secretária. pegou nalgumas folhas brancas, mergulhou o bico da caneta na tinta e escreveu:

"homens só gostam de mulheres" é um juízo analítico a priori.

Wittgenstein olhou para o que tinha escrito. então fez um bola com o papel, levou-a à boca e começou a mastigar. aos poucos a bola passou a ser uma pasta espessa, mas ele continuo a moer até que a saliva amoleceu a massa o suficiente para poder ser engolida. depois voltou a mergulhar o bico da caneta na tinta e escreveu outra vez:

"homens só gostam de mulheres" é um juízo analítico a priori.

fez outra bola e enfiou-a na boca. não tinha ainda acabado de engolir quando escreveu pela terceira vez a mesma frase. fez novamente uma bola, meteu-a na boca e mastigou. apesar de se sentir mal disposto, Wittgenstein ganhou coragem para continuar a escrever:

"homens só gostam de mulheres" é um juízo analítico a priori.

havia lágrimas a descer pela sua face:

"homens só gostam de mulheres" é um juízo analítico a priori.

havia uma negação infligida pelo medo na sua boca:

"homens só gostam de mulheres" é um juízo analítico a priori.

havia uma paixão reprimida pela dúvida e pela insegurança:

"homens só gostam de...

quando tragou a última bola, havia em Wittgenstein um grito a rasgar-lhe os órgãos. o rosto de Russell e a palavra "amo-te" entranhados no pensamento. quando pousou a cabeça na secretária, havia em Wittgenstein duas certezas:

havia uma verdade e havia um juízo a entupir-lhe a garganta.

quinta-feira, maio 25, 2006



o Koan de hoje:

qual é o som do silêncio?

quinta-feira, maio 11, 2006


NO DECÍA PALABRAS

No decía palabras,
acercaba tan sólo un cuerpo interrogante,
porque ignoraba que el deseo es una pregunta
cuya respuesta no existe,
una hoja cuya rama no existe,
un mundo cuyo cielo no existe.

La angustia se abre paso entre los huesos,
remonta por las venas
hasta abrirse en la piel,
surtidores de sueño
hechos carne en interrogación vuelta a las nubes.

Un roce al paso,
una mirada fugaz entre las sombras,
bastan para que el cuerpo se abra en dos,
ávido de recibir en sí mismo
otro cuerpo que sueñe;
mitad y mitad, sueño y sueño, carne y carne,
iguales en figura, iguales en amor, iguales en deseo.
Aunque sólo sea una esperanza
porque el deseo es pregunta cuya respuesta nadie sabe.

(Luis Cernuda)

segunda-feira, maio 01, 2006

"Le chemin du travail" - Jean-François Millet



NÓS SOMOS TRABALHADORES

O homem trabalha a terra
Para produzir o pão
Hoje é o mesmo que era
Continua ainda à espera
De melhor situação.

Nós somos trabalhadores
Que no campo trabalhamos
Trabalhamos a rigor
A servir o Lavrador
Para ver se nos mantemos.
Quando trabalho não temos
À Câm’ra nos dirigimos
A pedir ao Presidente
Que tenha dó desta gente
E nos dê algum destino.
Que nos dê algum destino
Que nos dê algum agasalho
À Câm’ra nos dirigimos
A alegar o que sentimos
Quando não temos trabalho.

Não é a ceifa que mata
Não é o cavar que custa
Custa é ver-mos desprezada
Até quando abandonada
Esta causa certa e justa.

Nós somos trabalhadores
Que no campo trabalhamos
Trabalhamos a rigor
A servir o Lavrador
Para ver se nos mantemos.
Quando trabalho não temos
À Câm’ra nos dirigimos
A pedir ao Presidente
Que tenha dó desta gente
E nos dê algum destino.
Que nos dê algum destino
Que nos dê algum agasalho
À Câm’ra nos dirigimos
A alegar o que sentimos
Quando não temos trabalho.

(Moda Alentejana)



“Desejamos abolir de forma radical a dominação e a exploração do homem pelo homem. Queremos que os homens, unidos fraternalmente por uma solidariedade consciente, cooperem de modo voluntário com o bem-estar de todos. Queremos que a sociedade seja constituída com o objetivo de fornecer a todos os meios de alcançar igual bem-estar possível, moral e material. Desejamos para todos pão, liberdade, amor e saber.”

(Errico Malatesta)