quarta-feira, agosto 31, 2005

homem/mulher autocolante
hoje vi um homem no autocarro. ou era mulher. ou era homem com vontade de não ser homem. ou era mulher com vontade de não ser mulher. ou era as duas coisas. era um homem/mulher em pé, um autocolante a sobressair da paisagem cinzenta dos passageiros. podia ser pintura da paula rego ou personagem do lynch, mas ele/ela não queria ser porque julgava não poder ser nada. e era tantas coisas... podia ser cowboy ou vendedor de tecidos em nova delhi. podia ser bailarina russa ou gata de rua a comer peixinho fresco. ele/ela pensou em desistir muitas vezes por julgar já não poder ser nada, mas se tivesse reparado que eu o/a olhava, se tivesse sabido tudo aquilo que era ou podia ser, nunca mais iria abaixar a cabeça nem desejaria a morte.

terça-feira, agosto 30, 2005



ENDLESS SKIES

How many years since you found yourself
Staring at an endless sky?

Unaware of yourself
Who you are and where you're going
Only living
Only breathing
Losing all sense of time

The most fragile of things
Captivates and embraces you
Surrender and be witness
To this rarest of moments

You live within the sense of the order of things
What is truth
What is important
What defines you

No need to fear
No need to worry
About years that passed
About time you lost

Live seconds as a lifetime
Time it does not matter
You live within the sense
Of the stillness of time

(VNV Nation)

domingo, agosto 28, 2005

fim
e no dia seguinte, quando ele acordou, a Marie tinha desaparecido. restava dela apenas um cheiro doce de rosas a evolar-se e o tacto suave das suas asas nos dedos tristes do Jean.

contudo, os teus dedos transformaram em veludo a minha pele.

sábado, agosto 27, 2005


ser essencialmente uma árvore
se eu for vegetal, gostava de ser árvore. e sou árvore quando passo pela paisagem. umas vezes reconheço a seiva que me nutre as veias e o cheiro primitivo da terra húmida na pele, outras vezes sinto o fogo que me destrói no interior do meu eixo lenhoso carbonizando-me os ossos e a alma.

terça-feira, agosto 23, 2005

A ARTE DE SER FELIZ

Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz. Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refelectidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes um galo canta. Às vezes um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz. Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar para poder
vê-las assim.

(Cecília Meireles)

segunda-feira, agosto 22, 2005

há mais do que dois espelhos
surgiste da nada para me trazeres o tudo. vou perguntar às pedras quem era eu antes de entrares no jardim fechado onde andei a devorar pétalas e a esperar pelos dias de chuva. tranquilamente sentada ao pé das amendoeiras em flor pensei que tinha achado a lagoa onde os corações mergulham para refrescar os seus silêncios quando o sol ameaça gretas. e agora parece-me miragem ou sonho aquela minha paisagem embora saiba que foi real. que é verdadeira ainda. que será sempre verdadeiramente real. mas tu apareceste de súbito nos intramuros do meu corpo e da minha consciência para me segredares que existem mais espelhos e para me trazeres todas as constelações em agitação que eu julgava ter encontrado inequivocamente num outro universo; numa outra corrente que à pouco ficou estagnada na certeza de uma perplexidade quase definitiva.

sábado, agosto 20, 2005


equilíbrio
fecha os olhos
ouve o silêncio
e depois transforma-te na aragem que atravessa desertos
ou na azinheira que recebe agradecida todos os raios de sol
e todas as chuvas.

quinta-feira, agosto 18, 2005

um todo multiplamente uniforme
não me digas que não vês no espelho aquilo que vês na cidade. tu és o mesmo. no espaço limitado do teu quarto ou nas ruas d'água e nos jardins. és tudo aquilo que és e também o seu oposto. cá dentro e lá fora. diz que aquilo que vês no espelho é a frente ou é o verso do que se projecta nas paredes dos prédios ou dos cafés e só depois sentirás o sossego da tua homogeneidade.
zenway
muito sinceramente: nada é assim tão grave, pois nada é eternamente igual. basta não nos aferrar teimosamente às circunstâncias e deixar-nos levar pelo ritmo ondulante dos acontecimentos.

terça-feira, agosto 16, 2005


quando mais existo é quando me deixo embriagar sem razão alguma por um som, uma imagem, um sabor, um cheiro ou uma suavidade.

instantes de elevação
há dias em que há momentos em que a memória seca definitivamente quando decidimos esquecer tudo o que se passou antes da última lembrança enxugar; quando resolvemos abandonar o nosso estado sólido e consciente para nos dissolver no cosmos dos entes que não precisam de pensar ou sentir.

segunda-feira, agosto 15, 2005

mutabilidade
uma pedra poderá ser amanhã uma flor, um pássaro, um livro ou um homem sábio com estrelas nas mãos.