domingo, fevereiro 18, 2007


às vezes saio à rua com um saxofone no meu peito


o meu avô era saxofonista. aos domingos à tarde, depois de eu ter passado horas a desenhar na sala de jantar, o pai da minha mãe ia buscar o seu saxofone e sentava-me no seu colo. eu pedia-lhe para poder abrir o estojo e ele dizia "está bem", e depois acrescentava "devagarinho". e era assim como eu abria o estojo, aquilo que eu imaginava ser uma vagem de alfarroba madura: com gestos pequenos lentos delicados.

ontem à tarde falei com a minha mãe ao telefone. foi ela que me fez lembrar mais uma vez nos domingos da minha infância. nas tardes no quintal da casa dos meus avôs durante a primavera e o verão e o outono antes do frio chegar. nas tardes na sala de jantar da casa dos meus avôs durante o tempo em que as amoreiras ficavam completamente nuas. o saxofone ligeiramente desmembrado à minha frente, e o meu avô a pegar nas peças com gestos pequenos lentos delicados. um saxofone inteiro nas minhas mãos. "segura-o bem". eu sempre gostei do meu avô materno e ele sempre gostou muito de mim.
nos anos 50 o meu avô era um homem viúvo com dois filhos. nos anos 50 havia demasiado pó nas ruas da cidade e demasiada fome dentro das casas. nos anos 50 o meu avô era escultor durante o dia e músico à noite. por vezes, a minha mãe e o meu tio mais velho esperavam-no no portão de casa até vê-lo aparecer ao longe e então desatavam a correr rua acima ao encontro dele. depois, sentavam-se os três na mesa da sala e o meu avô tirava da campânula do saxofone um embrulho e pousava-o no centro da mesa. não era todas as noites que o meu avô conseguia levar para casa alguns petiscos dos locais onde ia tocar. nos anos 50 não havia pitéus para (quase) ninguém.

lembro-me do dia em que confessei ao meu avô o meu desejo. foi numa daquelas tardes em que me deixava perder na marcação de compassos, no caminho da semibreve à semifusa -sentir a música é ser uma folha a descer pelo riacho-. "gostava que algum dia este saxofone fosse para mim". abaixei o olhar, toda envergonhada, e o meu avô disse "está bem". olhei para ele, olhei para os seus olhos, "eu aprendo a tocar". ele sorriu e piscou um olho.

eu sempre gostei do meu avô materno e ele sempre gostou muito de mim. o som de um saxo foi sempre o meu preferido de entre todos os sons instrumentais: a sua respiração côncava numa cave em penumbra. ontem à tarde disse isto à minha mãe e disse-lhe que, por esses motivos, às vezes saio à rua com um saxofone pregado ao peito.