domingo, março 26, 2006

e foi assim


"Incredulità di San Tommaso" - Caravaggio

"L'amore vittorioso" - Caravaggio

sábado, março 25, 2006

mãos que se metem nas consciências


"La Luna" - Joe Sorren

"In Her Silent Way" - Joe Sorren

Quero dizer-te uma coisa simples: a tua

ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não

magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,

por isso, de deixar alguns sinais - um peso

nos olhos, no lugar da tua imagem, e

um vazio nas mãos. Como se as tuas mãos lhes

tivessem roubado o tacto. São estas as formas

do amor, podia dizer-te; e acrescentar que

as coisas simples também podem ser

complicadas, quando nos damos conta da

diferença entre o sonho e a realidade. Porém,

é o sonho que me traz a tua memória; e a

realidade aproxima-me de ti, agora que

os dias correm mais depressa, e as palavras

ficam pressas numa refracção de instantes,

quando a tua voz me chama de dentro de

mim - e me faz responder-te uma coisa simples,

como dizer que a tua ausência me dói.

******************

Nunca são as coisas mais simples que aparecem

quando as esperamos. O que é mais simples,

como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se

encontra no curso previsível da vida. Porém, se

nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos

nos empurrou para fora do caminho habitual,

então as coisas são outras. Nada do que se espera

transforma o que somos se não for isso:

um desvio no olhar; ou a mão que se demora

no teu ombro, forçando uma aproximação

dos lábios.

(Nuno Júdice)

quinta-feira, março 23, 2006

enxergo a vida...



...apreendendo as luzes e as sombras.

quinta-feira, março 09, 2006

HOMENAGEM A RICARDO REIS

I
Não creias, Lídia, que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor

Que adiámos colher.

Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite

Não existe piedade
Para aquele que hesita.


Mais tarde será tarde e já é tarde.
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa.


Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo.


(Sophia de Mello Breyner Andresen)

mais tarde será tarde e ainda não é tarde e nunca será tarde enquanto os olhos continuem abertos. a sorrir.

sexta-feira, março 03, 2006


faz hoje 10 anos
3 de Março de 1996 em Paris. morreu Marguerite Duras. lembro-me. cheguei em casa dos meus pais depois das aulas. eram cerca das nove e meia da noite. não sei ao certo onde estava a minha mãe quando eu abri a porta da casa e entrei e disse "olá", mas decerto que ela não tinha estado à minha espera durante horas na sala de jantar e mesmo assim, logo que fechei a porta e caminhei pelo corredor e entrei na sala, encontrei-a ali, em pé, à minha espera, como se assim tivesse permanecido durante horas. ficamos a olhar uma para a outra. o olhar da minha mãe é doce e límpido... depois, ela pegou no jornal e enquanto procurava a página certa disse "morreu Marguerite Duras". passaram apenas uns segundos entre as palavras da minha mãe e o seu dedo a assinalar a notícia. passaram ainda mais alguns segundos entre o dedo da minha mãe a assinalar a notícia e as minhas mãos a segurarem o jornal. acho que o tempo parou durante o espaço de irrealidade em que li o texto; em que senti um nó a crescer na minha garganta. no momento em que não consegui reter a pena, e a tristeza despenhou-se
liquidamente, devagar, pela minha face. "e agora?", disse eu. "agora restam os livros; as palavras", disse a minha mãe. "e as palavras que jamais serão escritas? que nunca lerei?", acrescentei.

É sempre numa casa que estamos sós. E não fora dela, mas dentro dela. No parque há pássaros, gatos. Mas, às vezes, também um esquilo, um furão. Não estamos sós num parque. Mas, em casa, estamos tão sós que, por vezes, nos perdemos. Sei, agora, que lá permaneci dez anos. Só. E para escrever livros que me fizeram saber, a mim e aos outros, que eu era a escritora que sou. Como é que isso se passou? E como será possível dizê-lo? O que posso dizer é que a qualidade da solidão de Neauphle foi feita por mim. Para mim. E que não é apenas nessa casa que estou só. Para escrever. Não para escrever como o havia feito até aí. Mas para escrever livros que me eram ainda desconhecidos e ainda nunca decididos por mim e nunca decididos por ninguém. Aí escrevi A Ausência de Lol V. Stein e O Vice-Cônsul. E, depois desses, outros. Percebi que era uma pessoa só com a minha escrita, só, muito longe de tudo. [...]

A solidão da escrita é uma solidão sem a qual o escrito não se produz, ou se esfarela, exangue de procurar o que escrever. Perde o seu sangue, já não é reconhecido pelo autor. E, antes de mais, é preciso que nunca seja ditado a uma secretária qualquer, por mais hábil que ela seja, e que não seja nunca, nessa fase, dado a ler a um editor.

É sempre necessária uma separação das pessoas que rodeiam aquele que escreve livros. É uma solidão. É a solidão do autor, a da escrita. Para inciar a coisa, interrogamo-nos acerca desse silêncio à nossa volta. Praticamente a cada passo que se deu numa casa e a todas as horas do dia, sob todas as luzes, quer estejam do lado de fora, quer sejam lâmpadas acendidas durante o dia. Essa solidão real do corpo torna-se outra, inviolável, a da escrita. Eu não falava disso a ninguém. Nessa época da minha primeira solidão, tinha já descoberto que dedicar-me à escrita era o que eu tinha de fazer. Já o tinha visto confirmado por Raymond Queneau. A única apreciação de Raymond Queneau foi esta frase: "Não faça mais nada, escreva."

Escrever, era a única coisa que me povoava a minha vida e que a encantava. Fi-lo. A escrita nunca mais me abandonou.

Escrever - 1993


"e agora?". agora; depois; sempre restarão os livros. e não só. restam as palavras dela que estão a ser lidas neste instante por alguém; as palavras que alguém haverá de ler mais tarde, algum dia, e que são agora palavras futuras como se ainda não tivessem sido escritas; as palavras que eu relerei e que serão novas para mim porque nunca serão as mesmas. porque não sou eu a mesma. parece que sei mais alguma coisa sobre a Morte do que sabia naquela época e tenho a certeza que sei menos sobre a Morte do que sabia na altura, embora nunca mais chorasse pela morte de um escritor chegado. nunca voltei a chorar pela morte de um escritor. resta a escrita que não morre porque sempre há leitores a nascerem (ou a renascerem) e, assim, as palavras serão sempre escritas pela primeira vez. ou eu nunca deixarei de a ver sozinha na sua casa a escrever quando, sozinha na minha casa ou no parque separada das pessoas e dos esquilos, longe de tudo, leia de novo as suas palavras. depois, também eu nunca falarei disso a ninguém.