quinta-feira, maio 24, 2007


SÉRIE "DE DENTRO PARA FORA"

* nº 1

* nº 2

* nº 3

domingo, maio 20, 2007


PRÉMIO APE 2006 PARA MARIA GABRIELA LLANSOL
pela obra Amigo e Amiga


excêntrica inovadora subversiva inteligente delicada


IV


Ontem sobrevivi a uma noite de inverno, depois de
um dia que teve o ritmo do conflicto ________, do en-
contro________, e da espera.

________ no terraço, a emanação da noite era exac-
tamente igual à da outra noite na minha infância de Al-
pedrinha.

Era a noite de um afecto profundo,
depois de um conflicto que me marcara; não havia vento
na noite,
mas eu pensava no vento à deriva, e levantei a cabeça
para ver de que lugar vinha ele do céu; deparei, primeiro,
com o azul tinta, sem estrelas, e depois com as próprias
estrelas frias e cintilantes que me aproximavam do espaço
onde eu queria permanecer. Elevei-me, então, ao céu,
sempre com a cabeça inclinada para trás.
Minha cabeça, olha.

Distintamente, todas as estrelas da Ursa Maior ___ as
quatro do trapézio, a cauda e, seguindo o que me tinham
ensinado na Escola, vi a Estrela Polar.
Com a infância invertida sobre
a minha cabeça ___ e quase sem
eu em face de um prin-
cipio de céu
no meu firmamento ___ estremeci com o afecto delicioso
do mundo;
não podia deixar de olhar para cima, de parar de respi-
rar a noite, de murmurar que estava a criar uma lingua-
gem térrea para a estrela polar.
As quatro estrelas que sustentavam o brilho da Ursa
possuíam o esplendor de um animal suspenso da sua
cena. Sem a posse do eu que está no céu, não sei que
fazer da minha infância. O animal duradouro da terra
começa a noite, e é o primeiro dos meus afectos que vão
pelo mundo;
Foi assim que me trouxeram a casa, nem se-
quer houve suspensão na noite inesquecível; a meio da
estrada, vimos um vulto à mercê do primeiro automó-
vel que passasse.
Olhei profundamente o chão, na noite, com a mesma
expressão de olhar que erguera para o céu; e sob
o labéu de feio na sua boca de sapo, descobri um ser de
natureza tocante, de aspecto vulnerável e bizarro, em
que cada feição me atraía o afecto e o amor. "Ele é
assim, infinitamente belo, através de uma outra percep-
ção do Universo", pensei. "Mas não estás no bom cami-
nho", fiz-lhe sentir, com a rapidez indizível da comuni-
cação directa. "Vou pôr-te no bom caminho, pois eu
tenho braços, e posso proteger-te do meu falcão."
Tendo uma certa relutância, por causa da pele vis-
cosa, em pegar directamente no sapo fulgurante, envol-
vi-o na minha camisola, e pu-lo ao abrigo do olhar de
Aramis.
A noite passava, profunda, pelo mundo,
e roubava as almas que amavam o livro de imagens, desde
o princípio dos sapos, e das constelações postas sob a
protecção de um animal. A Ursa caminha no céu, um
sapo dera-me o privilégio de eu lhe pegar,
a manhã estava por servir.


V

a conclusão de que não há abismo, e que a infância não
pára de desenvolver-se e crescer,
é um novo princípio de realidade, de morte, de velhice:
eu não deixo de viver no mundo interior e exterior das
metamorfoses flutuantes; é já dia, mas a noite que con-
duz a esperança no pensamento, e sobre si própria, não
acabou.
Não acabou definitivamente;
onde estará, protegendo-se da luz, o sapo que brilha?
Eu tenho a intuição, Aramis, de que os monstros
são as tentativas mais puras do Universo.
"Olha-os, e não os mates."

(de O raio sobre o lápis)



A COMUNHÃO

Começara o ritmo da noite na taberna, os braços cruzados e descruzados sobre o balcão, os vértices dos cotovelos a abrirem feridas nas mesas, as moedas gastas com tristeza como barcos acabados num naufrágio. Era um movimento que se despia no silêncio contraído do Inverno e na luz moderada da lâmpada enroscada na trave central do tecto. A cor dura do vinho estampava-se na boca dos homens. Um canto de criança ou de mulher jovem alvejava para além das janelas. Bruno recolhia-o no seu próprio sorriso. "Um nascido", pensou José. "E vai morrer". O canto adormeceu (talvez a criança que o cantava ou a quem ele se dirigia), depois acordou, mais alto, com as palavras a evocarem oliveiras varejadas. A evocação esmagou o sorriso de Bruno. Tinha um aspecto lúcido de saúde, sem dúvida provisório, a ocultar o seu interior doente. Pela manhã varejara oliveiras na serra, os braços convergentes a aplacar as ondulações do pau. E de súbito principiara a sua dor, a flecha detestada da sua ermida de músculos e ossos, a cravá-lo completo no abdómen, somente uma parte do seu corpo. Gritara, fixo ao tronco esbranquiçado de uma oliveira, outros gritos iminentes sobre o rosto. Depois a dor acabara e ele reatara o movimento do seu pau.

- Estás doente, ó Bruno? - perguntou Lucília com a sua voz impudente.

Sentara-se de costas para o balcão e perscrutava, para cosê-las, peças brancas de roupa. As suas pernas dobradas armavam uma mesa coberta pela toalha do avental.

- Estive no hospital.
- Operaram-te?
- Não.
- Por que é que não te operaram?
- Não sei.
- As azeitonas, este ano, apodrecem nas árvores.

Bruno baixou a cabeça, a isolar-se na solidão da mesa a que estava sentado. Palpava-se despovoado de futuro: oliveiras sacudidas pelas varas e panos a brilharem a cerração de incontáveis azeitonas juntas; azeite lento, quase como corpo, a escorrer dos lagares para as bilhas; e, sobretudo, vozes a preludiarem o contacto íntimo de carne bem viva ("Ana, vais à serra?" "Agora?" "Não, logo". "Não, não vou à serra". "Agora não, mas logo. Ana, logo espero-te na serra.")

- Bebe, Bruno - disse Albino.

Bruno sentiu a rajada da sua mão nas costas, implacável como as destinadas aos complementos vivos. Ouvia falar os homens, converter-se em gestos e em palavras o seu ímpeto amachucado pelo silêncio grave dos campos. A taberna, através dos caixilhos das janelas e da porta, trancava-lhe a serra. Sumiam-se todas as suas Anas, numa procissão floral. [...]


INTRÓITO

As palavras escritas numa vidraça embaciada pela chuva são sempre tristes. Não importa o seu verdadeiro significado.
Quando Joana chegou com dois copos cheios de sumo de laranja, João Mateus apagou-as com um movimento rectilíneo da mão esquerda. A alma de João Mateus estava nas mãos, enquanto a de Joana estava nos olhos.
Joana sentou-se com todo o ser inclinado para João Mateus que continuava de pé, junto à janela. Depois acendeu o candeeiro e a luz cintilou no sumo da laranja.

- Parto segunda-feira - disse João Mateus com naturalidade.
- Vais acabar por falar à provinciana - respondeu ela também com naturalidade.
- Achas ridículos os médicos de aldeia? Habituar-me-ei?
- Tenho a certeza. Por que não?

Habituar-se-ia. O seu corpo abriria asas tranquilas e ritmadas. Mas João Mateus não era uma ave. Era uma árvore.

- Gostas de mim? - perguntou ela.

Nunca fizera aquela pergunta. João Mateus estendeu-lhe a mão por cima da mesa. Ela apertou-a e guardou o momento que cintilava com a luz no sumo de laranja.

- Se conseguisse ser diferente casava contigo... Gostava de ser pássaro.

Ele detestava todas as raízes e da paixão só conhecia a ânsia dos sentidos que em breve se apagava. No entanto, nessa teimosia orgulhosa, era uma raíz.

- Se fosses diferente já não serias o João Mateus...

Era sincera. O amor que sentia crescera tanto que não procurava encontrar finalidade, mesmo agora, que a distância surgia para sorver todos os instantes com a sede de um buraco de areia.
A presença de Joana transformava João Mateus em criança. A sua alma de homem voltava à infância e abandonava-se. Ela achava-o semelhante a um menino, no começo do sono e, virgem, tornava-se sua mãe.
As camélias entornavam na mesa o perfume da sua cor vermelha que, lentamente, se diluia. Às vinte horas João Mateus partiu. O tempo enrodilhava Joana. As pontas de cigarro, no cinzeiro de prata, e o cheiro a tabaco eram realidades que esboçavam uma presença perdida.
Francisco, ao entrar, perguntou a Joana:

- Esteve cá o João Mateus?
- Esteve - disse a irmã - Se fizer sol, amanhã daremos os três um grande passeio pelo campo. Gostas?

Francisco apertou-a nos braços e beijou-lhe o cabelo, visionário de bichos e pedras nos bolsos das calças.
Joana sentiu que era a infância que a beijava. Então chorou a partida de João Mateus. [...]

(de Os pregos na erva)


sábado, maio 12, 2007


cinco minutos a pé
hoje estarás muito perto da minha casa.
lembrei-me de ti esta manhã quando
me olhei ao espelho e imaginei os dias
andando pelo corredor com passos
pequenos de gigante.
nós mudamos a cada um desses passos
com mais uma branca no cabelo.
não partilhamos nada
a não ser
o espaço infinito de uma mesma
respiração ou esta cidade cheia de sol à tarde.

hoje estarás muito longe da minha casa.
mais ou menos a uma distância de cinco
passos gigantes.